Educação

Nove em cada dez educadores relatam censura e perseguição em todo o país, aponta pesquisa

Levantamento nacional com 3.012 profissionais da educação básica e superior revela escalada de violência, intimidações e até demissões ligadas à limitação da liberdade de ensinar, sobretudo em temas como gênero, sexualidade, violência sexual e ciência

09/12/2025 às 10:25 por Redação Plox

Nove em cada dez professores e professoras da educação básica e superior, das redes pública e privada de todo o país, já foram alvo direto de perseguição ou presenciaram episódios de perseguição e censura contra profissionais da educação. O cenário foi revelado pela pesquisa inédita A violência contra educadoras/es como ameaça à educação democrática, do Observatório Nacional da Violência Contra Educadoras/es (ONVE), da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com o Ministério da Educação (MEC).


Ao todo, 3.012 profissionais da educação básica e superior participaram do levantamento, que buscou mapear violências relacionadas à limitação da liberdade de ensinar, tentativas de censura e perseguição política, além de registrar casos de agressões físicas, embora esse não fosse o foco central do estudo.

Aponta pesquisa do ONVE da Universidade Federal Fluminense

Aponta pesquisa do ONVE da Universidade Federal Fluminense

Foto: Reprodução / Agência Brasil.

Censura disseminada e violência recorrente

De acordo com o coordenador da pesquisa, professor Fernando Penna, o objetivo foi identificar situações em que o educador é impedido de abordar determinados temas ou utilizar materiais didáticos, caracterizando perseguição de natureza política e institucional.


O estudo aponta que a censura se tornou um fenômeno disseminado em todo o território brasileiro e em todas as etapas da educação, atingindo não apenas quem está em sala de aula, mas todos os que atuam em atividades educativas.


Na educação básica, 61% dos professores declararam ter sido vítimas diretas de violência ligada à censura ou perseguição. Na educação superior, o índice foi de 55%. Entre os educadores diretamente censurados, 58% relataram tentativas de intimidação, 41% afirmaram ter sofrido questionamentos agressivos sobre seus métodos de trabalho e 35% disseram ter enfrentado proibições explícitas de conteúdos.

Os relatos incluem ainda demissões (6%), suspensões (2%), mudança forçada de local de trabalho (12%), remoção de cargo ou função (11%), agressões verbais e xingamentos (25%) e agressões físicas (10%).

Temas obrigatórios sob ataque

Segundo Penna, os dados mostram que a violência e a censura estão enraizadas nas instituições de educação básica e superior, atingindo especialmente temáticas obrigatórias previstas em diretrizes educacionais.


Um dos exemplos citados é o de uma professora do interior do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19. Um colega tentou utilizar, em sala de aula, material do Ministério da Saúde com orientações sobre medidas sanitárias e importância da vacinação, mas foi impedido com o argumento de “doutrinação”.


A pesquisa também identificou professores proibidos de tratar de violência sexual, em especial quando o conteúdo alerta estudantes para o fato de que esse tipo de crime pode ocorrer dentro de casa. Segundo Penna, é justamente após aulas sobre orientação sexual, gênero e sexualidade que muitos jovens conseguem identificar situações abusivas e denunciar os agressores.


De acordo com o levantamento, a discussão de temas envolvendo gênero e sexualidade foi apontada como o principal motivo da violência relatada por professores, ao lado de outros conteúdos considerados sensíveis, como a teoria da evolução, contestada por parte de famílias que preferem o ensino do criacionismo.


A proporção de educadores que passaram diretamente por esse tipo de violência ficou entre 36% e 49%, e a maioria relatou que os episódios se repetiram quatro vezes ou mais. As principais motivações para questionamentos à prática docente foram: questões políticas (73%), gênero e sexualidade (53%), religião (48%) e negacionismo científico (41%).

Escalada com a polarização política

Os pesquisadores também pediram que os educadores indicassem os anos em que sofreram os episódios de violência, para avaliar a relação com o ambiente político. A hipótese do grupo é que o fenômeno está conectado ao aumento da polarização no país.


Segundo Penna, os dados resultaram em um gráfico que mostra crescimento da violência a partir de 2010, com picos em 2016, 2018 e 2022, anos marcados pelo processo de impeachment presidencial e por duas eleições para a Presidência da República. Para o coordenador, a tensão política que o país vive acabou entrando nas escolas e universidades.

Violência que parte de dentro da comunidade escolar

Quando questionados sobre quem seriam os agentes da violência, os educadores apontaram majoritariamente membros da própria comunidade interna das escolas e universidades: direção, coordenação, familiares e estudantes. O estudo conclui que, embora o clima de hostilidade possa ter sido incentivado por figuras públicas e disputas políticas mais amplas, a prática já está incorporada ao cotidiano das instituições de ensino.


Entre os grupos identificados como responsáveis pelos ataques, aparecem profissionais da área pedagógica (57%), familiares de estudantes (44%), estudantes (34%), outros professores (27%), profissionais da administração das instituições (26%), funcionários (24%) e representantes de secretarias de educação ou reitorias (21%).

Perseguição e impacto na carreira docente

O coordenador do estudo avalia que esse quadro de perseguição e violência envolve tanto disputas partidárias quanto aspectos políticos da vida cotidiana, e está profundamente conectado ao contexto nacional dos últimos anos.

Para 33% dos educadores, a perseguição foi descrita como extremamente impactante na vida profissional e pessoal; para 39%, o impacto foi considerado bastante intenso em ambas as esferas. Em muitos casos, as consequências levaram docentes a abandonar a profissão, processo que Penna relaciona a um “apagão” de professores.

Clima de medo nas escolas e universidades

O levantamento mostra que a violência não atinge apenas quem sofre diretamente os ataques. Mesmo quem não foi alvo, mas presencia os episódios, relata mudanças no ambiente de trabalho, que se torna mais tenso e inseguro.


A maioria dos educadores afetados menciona insegurança e desconforto como principais consequências. O desconforto com o espaço de trabalho foi apontado como o terceiro maior impacto da censura, citado por 53% dos participantes. Em resposta a esse cenário, 20% disseram ter mudado de local de trabalho por iniciativa própria.


Segundo Penna, o medo de abordar determinados temas faz com que professores deixem de cumprir plenamente sua função formativa, o que gera um dano amplo à sociedade. Questões ligadas a gênero, por exemplo, têm sido evitadas por parte dos educadores, seja por temor de retaliação, seja por restrições impostas por gestores ou famílias.

Professores sob vigilância constante

Cerca de 45% dos professores entrevistados afirmaram sentir-se constantemente vigiados, o que leva muitos a praticar autocensura em sala de aula. Relatos de docentes de escolas privadas indicam que determinados assuntos são evitados por receio de demissão.


Para o coordenador, o quadro revela um problema estrutural da sociedade brasileira, na qual profissionais da educação temem exercer sua função de acordo com o conhecimento acumulado na área. O estudo destaca que não apenas professores, mas todos os que atuam na produção de conhecimento confiável e na checagem de informações falsas — como jornalistas — têm sido alvo de violência e perseguição.


Penna lembra que, em 2023, foi criado o Observatório Nacional da Violência Contra Educadoras/es, responsável pela pesquisa, e também o Observatório Nacional da Violência Contra Jornalistas, voltado a outra categoria profissional que, segundo ele, sofreu forte perseguição nos últimos anos.

Regiões mais afetadas e alcance nacional

Os efeitos da censura e da perseguição foram mais fortemente identificados nas regiões Sudeste e Sul, com destaque para estados onde há registros recorrentes de episódios de violência política em ambientes escolares. Em um desses estados, o número de respondentes foi especialmente alto, refletindo a frequência de casos relatados por docentes.


Em todas as cinco regiões do país, porém, a situação se mostrou grave: 93% dos educadores disseram ter tido algum contato com episódios de censura. Desses, 59% passaram diretamente pela situação, 19% souberam de casos envolvendo colegas e 15% relataram ter ouvido falar sobre ocorrências em seu entorno profissional.

Medidas de proteção e próximos passos

Penna defende a criação de ações específicas para proteger professores, especialmente em anos de eleição presidencial, quando a tendência, segundo a pesquisa, é de recrudescimento da violência e da perseguição.


O estudo já resultou em um amplo banco de dados, que ainda passará por novos cruzamentos, incluindo análises por estado. Em uma segunda etapa, em andamento, serão realizadas entrevistas com uma amostra de 20 professores entre os que responderam ao questionário, com o objetivo de aprofundar a compreensão qualitativa das situações relatadas.


No relatório completo em preparação, o Observatório propõe a criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra educadores, como resposta do poder público. Essa política, segundo o estudo, já estaria em discussão no âmbito do MEC, e o Observatório mantém um acordo de cooperação técnica com o Ministério dos Direitos Humanos.

A gente tem insistido muito que os educadores trabalhem na perspectiva da educação e direitos humanos, porque são justamente aqueles que mais sofrem violência. Então, a gente tem uma demanda de que os educadores sejam reconhecidos como defensores de direitos humanos e incluídos como uma categoria específica nas políticas do ministério. É uma ferramenta de denúncia de violação de direitos humanos.

Fernando Penna

Com informações da Agência Brasil.

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